Por: Ricardo Machado | 19 Setembro 2018
Compreender a filosofia negra de Achille Mbembe, com toda sua riqueza e complexidade, requer levar em conta um mundo que é outro porque são vários. Decompor como os arranjos desses mundos engendram uma filosofia outra foi a tarefa realizada pelo Prof. Dr. Deivison Moacir Cezar de Campos durante a conferência Crítica da razão negra, na segunda-feira, 17-9-2018. O evento compõe a programação do A contemporaneidade em debate. Intérpretes e obras.
Achille Mbembe nasceu no Camarões, às margens do Atlântico, em 1957, quando seu país ainda era colônia da França e da Inglaterra. As mais de 200 línguas nativas sofreram (e sofrem) um processo sistemático de invisibilidade, o que dá um outro contorno à obra, que retoma valores genealógicos do pensamento negro. O processo de independência seguiu até 1982, com mais de 60 mil mortes.
Descrever o pensamento de Mbembe exige sair do lugar comum e reducionista do rótulo pós-colonialista, porque trata-se de algo mais amplo, das epistemes do Sul. “O próprio Mbembe diz, em mais de uma entrevista, ‘é preciso não ter me lido para dizer que eu sou um autor dos estudos pós-coloniais’. Nesse sentido, o autor apresenta uma síntese interessante sobre outras dinâmicas do tempo em longa duração, o que se torna um dos principais elementos sobre a obra”, explica Campos.
“Levar em conta memórias e experiências dos povos discriminados é o que está no centro do debate de Mbembe e que também está na obra de Fanon, Os condenados da terra (Juiz de Fora: Editora UFJF, 2015). Nisso está a possibilidade de pensar uma nova universalidade, que é a partir da categoria do ‘devir negro’”, propõe.
Achille Mbembe (Fonte: Reprodução YouTube)
De acordo com o professor e pesquisador, uma genealogia da presença negra no chamado “Ocidente” pode ser delineada a partir de três grandes movimentos históricos. “O primeiro momento é no século XV, com o tráfico atlântico, objetificando o corpo negro e fazendo-os perder o nome e a língua. Essa coisa da perda do nome é importante de pensar a partir da semiologia francesa, em que tudo existe na linguagem, de como se constrói um processo de apagamento da pessoa”, explica Campos.
Mais tarde, a partir do século XVIII, começa a reivindicação dos negros para o “mundo dos vivos”, por meio da defesa de seus idiomas, como marca de uma nova forma de (re)existência. Por fim, o professor explica que o terceiro momento, já no século XXI é marcado pela globalização. “É um tempo curto, tudo pode, e o tempo opera na forma-dinheiro. Se constrói uma ficção do empreendedor de si mesmo, que é também uma forma de desaparecimento. Nesse processo, novamente, os indivíduos estão aprisionados no próprio desejo, é uma forma de coisidade, em função das normas de mercado que as pessoas são convocadas a seguir”, critica.
Na promessa do empreendedor de si, está embutida a necessidade de formação permanente, o que, por outro lado, engendra uma vida esquizofrênica à medida que a vida não é vivida. “A ideia do empreendedor de si é tão sedutora que faz com que pessoas que possuem corpos violentados simbolicamente se transformem em defensores de um modo de vida que não o quer, ao contrário, o rejeita profundamente. No fundo, é a transformação do ser humano em homem-coisa, homem-máquina, homem-fluxo que leva a um desenraizamento de nova ordem”, avalia.
O negro, como ser-outro, passa a ser invisível no que ele realmente é, sobretudo por uma recusa em vê-lo, seja no encobrimento – não se busca saber quem ele é –, seja no exotismo – o negro reduzido à sua dimensão sexual. “A ideia da experiência é central nas culturas negras, porque o corpo é o lugar da aprendizagem e da máxima experiência. Nesse sentido, a dualidade temporal é constitutiva de várias das culturas negras, por isso há uma relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, porque enquanto a pessoa é lembrada, ela está viva e só vai morrer quando chega o tempo imemorial”, descreve. “O corpo é lugar genuíno da memória”, complementa.
Deivison Campos (Foto: Ricardo Machado/IHU)
Segundo Campos, a força vital que aparece com força na teoria de Mbembe tem a ver com aquilo que no Brasil chamamos de axé. “Ele [Mbembe] vê isso como uma potência que aparece nas narrativas que entrelaçam a questão da vida e da morte. O Orum é o lugar dos orixás e o Aiyê é o lugar do duplo humano, que diz respeito a essa ideia de o corpo estar presente em vários mundos”, pontua.
A filosofia de Achille Mbembe corta a carne do tempo transformando o mundo em múltiplos, rearranja categorias eurocentradas na busca de um pensamento vigoroso, em longa trajetória. “Trata-se de um pensamento em travessia. Pensamento mundo. É possível se relacionar não somente com ou outro, mas também com a natureza em sintonia e respeito às alteridades”, finaliza.
Deivison Moacir Cezar de Campos é jornalista e batuqueiro duas vezes, por sua matriz religiosa e por ser ritmista de escola de samba. Graduado em comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e mestre em História Social pela PUCRS, com especialização em História Contemporânea na Fapa. Realizou doutorado em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Coordena o Bacharelado em Jornalismo e os cursos de Comunicação Social, habilitações em Publicidade e Propaganda e em Relações Públicas, e o Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena da Universidade Luterana do Brasil. Coordena a área científica de Comunicação e Mídia da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN.
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Do Orum ao Aiyê, a filosofia de Achille Mbembe na dobra dos mundos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU